3.11.09

a means to an end

Balançava a cabeça ao som da bateria, o seu pé direito acompanhava a batida. Tinha um copo na mão e o diabo no corpo, o seu olhar estava ausente tal como a sua alma. O que antes era certo agora tornara-se escuro e medonho, do seu futuro nada esperava e do seu passado nada nos deixava conhecer. Bloqueava-nos o caminho com dentes de leão e amores-perfeitos e nós, incautas, seguíamo-lo para todo o lado. Onde quer que fosse. Ele era o Deus Sol, omnipotente, omnipresente. Pretendia um dia alcançar a glória e para isso não era preciso governar o mundo, bastava comandar os nossos corações. Mas, por enquanto, estava ali, contuso. Nenhuma de nós sabia como alterar a sua expressão de desalento, apenas ela. É curiosa a metamorfose que se gera, o ardor que em si penetra, a nostalgia que o corrói, aquando da doce cocaína.
Passa a noite. Passam mil iguais àquela e outras tantas haviam passado. Afinal, maus hábitos nunca se perdem. A má vida que leva, nenhuma de nós pode alterar, nem mesmo julgar. Pois, que sabemos nós? Quando aqui chegou trazia a roupa do próprio corpo e uma caixa misteriosa, fechada. Assim continua.
A minha irmã não se conforma. Para ela, ele é apenas um impostor, um trapaceiro, um aproveitador, um sedutor, um Don Juan, um homem apaixonante! Foi ela a primeira a vê-lo naquela noite de temporal e também a primeira a apaixonar-se - secretamente. Vive para lhe agradar e sem a promessa de o ver a cada dia talvez nem se levantasse da cama, mas… admiti-lo? Nem pensar! Prefere deixar que essa paixão escondida continue a morder-lhe o peito, esvaindo-se em sangue, castigando o coração que de nada é culpado em vez de confessar o amor sofrido que transporta, diariamente, hora atrás de hora, prontamente, de cima para baixo, de baixo para cima, do quarto dela à cave dele. A caixinha está lá, feita de madeira e candura, forrada a veludo carmim desgastado e honrado, qual caixa de Pandora à espera de ser aberta.
Por vezes, quando ele sai, ela vai para perto da caixa. Senta-se no chão, tira-a debaixo da cama dele e coloca-a em frente dela, tentadora. E fica ali. A olhar para a caixa. A caixa, oca, deve guardar um segredo terrível. Por isso é que está fechada. Estou certa de que a sua beleza exterior é um disfarce para as atrocidades que comporta. Talvez um passado de morte ou um caso de traição ou cartas de um amor desgraçado ou lembranças de terror vivido, que escondeu dentro da caixa para não ter de enfrentar. Ele é corajoso: protege-nos dos salteadores, arranja o telhado mesmo nos sítios mais altos e em dias de tempestade recolhe o rebanho. Mas também é medricas: esconde o seu passado numa caixa.
Está uma linda manhã, um sol radiante. A minha irmã leva-lhe o pequeno-almoço e em troca recebe um rugido mal-humorado da ressaca. Senta-se do lado de fora da porta, a chorar desalmadamente. Perdeu o controlo, a resistência. Ele abre a porta, levanta-a de um puxão, leva-a para dentro, encosta a porta. Atira-a para a cama, ajoelha-se e chora. Traz a caixa para a luz e entrega-lhe a chave.